Visto pelos críticos como um radical de direita, Trump se orienta pelo pragmatismo e, ao contrário do que faz o Brasil, não busca proximidade apenas de quem pensa como ele.
“Eles precisam de nós muito mais do que precisamos deles. Nós não precisamos deles, eles precisam de nós. Todo mundo precisa de nós”. Reproduzida por centenas de vezes pela imprensa brasileira ao longo da semana passada, a afirmação acima foi feita pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, horas depois da cerimônia que marcou seu retorno à Casa Branca. Ela se refere ao Brasil e à América Latina.
Não foi uma declaração espontânea. Tratou-se, na verdade, de uma resposta à pergunta feita por uma jornalista brasileira, interessada em saber se Trump tinha a intenção de procurar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ela queria saber, também, sobre o tipo de relacionamento que o novo presidente pretende manter com a vasta região que se estende do Rio Grande, que marca a fronteira dos Estados Unidos com o México, até o extremo sul da Patagônia.
Muita gente viu nas palavras do presidente recém-empossado um traço de arrogância, de prepotência e de desprezo pelos vizinhos — mas desta vez, pelo menos, ninguém ousou, como tem sido moda nos tempos atuais, acusá-lo de propagar fake news com a intenção de desestabilizar o governo brasileiro. Na mesma linha, nenhuma autoridade brasileira tomou a decisão, como também está na moda, de convocar Trump para explicar o que ele quis dizer ao afirmar que o Brasil precisa dos Estados Unidos mais do que os Estados Unidos precisam do Brasil. O que ele falou, ficou por isso mesmo. Ainda bem…
O fato é que nem a forma nem o conteúdo do que Trump disse geram qualquer tipo de surpresa. Estranho seria se, diante da pergunta feita à queima-roupa, ele calçasse as sandálias da humildade, cobrisse o Brasil de elogios e declarasse que a América Latina está entre suas prioridades. A resposta, sem dúvida, deixou transparecer um certo mau humor. Só que a pergunta foi feita num momento inconveniente, quando ele estava concentrado na assinatura de documentos que ditarão o tom de sua nova administração e não parecia minimamente interessado em discutir a relação de seu governo com o Brasil ou com a América Latina…
“HOMEM-FOGUETE”
A resposta de Trump contém um exagero evidente. Na condição de maior economia do mundo, dono de um PIB de US$ 28 trilhões, os Estados Unidos são, de fato, a grande potência econômica e militar do mundo. Do alto da posição que ocupam, dispõem de força suficiente para ditar o tom de seu relacionamento com a maioria dos países. O México e o Canadá, seus vizinhos mais próximos, que o digam. Mas isso não significa — e Trump sabe disso muito bem — que possam virar as costas para o mundo. O presidente não mede palavras quando compara os Estados Unidos com os outros países. Mas não se acanha em voltar atrás quando passa do ponto.
Em setembro de 2017, Trump zombou das ambições nucleares do ditador comunista norte-coreano Kim Jong-Um — a quem chamou de “pequeno homem-foguete”. Depois, se aproximou e manteve três encontros com Kim, para desconforto dos tradicionais aliados sul-coreanos. Em entrevista na sexta-feira passada, Trump manifestou a intenção de voltar a se reunir com o chefe de um dos países mais fechados do mundo.
A atitude prova que Trump escolhe seus aliados movidos não por afinidades ideológicas, mas por interesses estratégicos e econômicos. E isso vale tanto para inimigos históricos, como a Coreia do Norte, quanto para aliados de primeira hora, como Israel. Trump pode até ter afinidades ideológicas com o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. Mas, certamente não negaria seu apoio incondicional a Israel se o Partido Trabalhista estivesse no poder.
Trump sabe que, se por um lado, Israel depende do apoio dos Estados Unidos para não ser esmagado pelos inimigos, por outro, o país é um defensor intransigente dos interesses norte-americanos numa parte do mundo que, além de rica em petróleo, é estratégica para o comércio internacional. Mas que, também, é repleta de grupos terroristas e até de governos hostis, dispostos a tudo para ameaçar a segurança interna dos Estados Unidos.
Um governo como o de Trump sabe do valor de um aliado como esse. Sendo assim, jamais o abandonaria à própria sorte. Nos meios diplomáticos internacionais, circula o comentário de que, se Trump estivesse no lugar de Joe Biden em 2023, os terroristas de 7 de outubro talvez nem tivessem ousado invadir o território israelense, estuprar mulheres, degolar crianças, assassinar idosos e sequestrar mais de 200 civis pegos de surpresa pelo ataque covarde.
Ainda que o atentado tivesse acontecido, os Estados Unidos sob Trump certamente teriam agido com mais firmeza contra os terroristas do que agiram sob o comando de Biden. Assim, a guerra teria sido mais curta, o que teria poupado milhares de vidas. O fato é que a guerra se prolongou e os agressores logo passaram a contar com o apoio de vários governos e das próprias Nações Unidas — que não demoraram a tomar partido dos terroristas e a negar a Israel o direito de reagir à agressão que sofreu.
Por mais que Biden tenha deixado o governo reivindicando a autoria da iniciativa, é certo que o atual acordo de paz no Oriente Médio só saiu porque os terroristas tiveram receio do que poderiam esperar do novo governo norte-americano. O certo é que, tendo chegado ao ponto que chegou, o conflito abriu feridas profundas, que levarão anos para serem cicatrizadas — e o papel dos Estados Unidos será fundamental para que elas não continuem sangrando.
É pouco provável, por exemplo, que, no curto ou mesmo no médio prazo, haja clima para a implantação de um Estado Palestino, ao lado de Israel. Mas é preciso encontrar uma solução para que o povo palestino possa viver com dignidade sem que isso represente uma ameaça permanente a Israel. Essa é a missão que Trump tem pela frente.
PESO ESTRATÉGICO
E a América Latina? Bem… para começo de conversa, a região jamais será vista por Trump como um bloco. Cada um dos 20 países que a integram será considerado isoladamente e o relacionamento de Washington com eles será definido caso a caso, como sempre foi.
A diplomacia comercial norte-americana prioriza os relacionamentos bilaterais ao invés de, como é a tendência do Brasil, procurar se entender com blocos econômicos. Trump, especialmente, não gosta de lidar com blocos, nem mesmo com aqueles que contam com a participação de seu país. Em seu primeiro mandato, ele pôs fim ao Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta, na sigla em inglês). Firmado no governo do democrata Bill Clinton, em 1993, o Nafta pouco avançou nas gestões de George W. Bush e de Barack Obama, mas sobreviveu até ser formalmente extinto por Trump em 2018.
Pela lógica da diplomacia comercial norte-americana, e desde que se leve em conta os interesses dos dois lados, qualquer país — independente da ideologia de seu governo, do porte de sua economia ou de sua localização no mapa mundi — pode obter vantagens em seu relacionamento comercial com os Estados Unidos. O caso mais exemplar nesse sentido é o do Chile. Com um PIB de US$ 335 bilhões, o país mantém com os Estados Unidos um Acordo de Livre Comércio que completará 20 anos no próximo mês de junho. Bom para os dois lados, o tratado nunca foi posto em xeque nem sofreu alterações.
Quando o pacto foi assinado, em 2005, o Chile era governado pela socialista Michele Bachelet e os Estados Unidos, pelo republicano George W. Bush. É importante chamar atenção para esse ponto: a ideologia esquerdista de Bachelet não impediu que ela percebesse a importância de se relacionar comercialmente com a maior potência do mundo. E Bush, por mais conservador que fosse, não dificultou o entendimento. Quando Trump chegou à Casa Branca pela primeira vez, em 2017, Bachelet estava concluindo sua segunda passagem pelo Palácio de la Moneda, e o acordo prosseguiu sem qualquer sobressalto.
CONCORRÊNCIA PESADA
E qual é o papel do Brasil nessa história? Bem… à primeira vista, nada do que aconteceu até o presente momento indica uma mudança significativa nas relações comerciais entre os dois países. Brasil e Estados Unidos mantêm um fluxo de comércio bilateral importante demais para ser ameaçado por picuinhas ideológicas. No ano passado, esse fluxo somou pouco mais de US$ 80 bilhões. O valor é dividido meio a meio, com uma vantagem mínima para o lado norte-americano. Enquanto o Brasil exportou US$ 40,33 bi para os Estados Unidos em 2024, os Estados Unidos exportaram US$ 40,58 bilhões para o Brasil.
As exportações brasileiras para os Estados Unidos são compostas por aviões, suco de laranja, petróleo, artefatos de ferro, aço, café e carne. Já as exportações para a China, o maior parceiro comercial do Brasil, alcançaram US$ 116 bilhões no ano passado e têm como principal mercadoria a soja.
É aí que está o xis da questão: embora liderem as exportações brasileiras para a maioria dos parceiros, os grãos do agronegócio não constam da pauta de produtos vendidos à maior economia do mundo. Por quê? Bem… a afirmação de que o mundo precisa dos alimentos produzidos pelo agronegócio brasileiro pode valer para a China, para o Japão, para a Alemanha e para um monte de lugares. Mas não vale para os Estados Unidos. No que diz respeito aos produtos do agronegócio, os Estados Unidos não são clientes. São concorrentes. E essa concorrência, que já era pesada nos últimos anos, ficará ainda mais forte daqui por diante.
Trump nomeou para o Departamento da Agricultura dos Estados Unidos a advogada Brooke Rollins. Ela nasceu e cresceu numa fazenda e, antes de obter seu diploma em direito pela Universidade do Texas, se graduou em desenvolvimento agrícola na prestigiada A&M University. Trata-se de um centro fundado no final do Século 19 que se firmou como um dos principais centros de conhecimento do agronegócio mundial.
Brooke Rollins integrou o staff da Casa Branca na primeira administração Trump, como uma das conselheiras para assuntos políticos mais próximas do presidente. Nos quatro anos da administração Biden, liderou uma organização chamada America First Policy Institute (AFPI) que, numa tradução livre, significa Instituto de Políticas para a América em Primeiro Lugar. Dessa posição, e sempre em contato com o chefe, ela foi responsável pelo desenvolvimento de parte da estratégia que reconduziu Trump à presidência.
No texto em que apresentou a nova secretária, Trump ressaltou o compromisso de “Brooke em apoiar o fazendeiro americano” e a “defesa da autossuficiência alimentar dos Estados Unidos”. O que isso significa? Bem… significa que a chance de o maior país do mundo, que disputa com o Brasil a condição de maior potência agrícola do mundo, abrir suas fronteiras para produtos agrícolas brasileiros é zero. Absolutamente zero.
Pior: os Estados Unidos daqui por diante certamente avançarão sobre os mercados que o Brasil já conquistou. Ninguém deve se espantar, por exemplo, se o novo acordo comercial que Washington negociará com a China estabelecer condições preferenciais para a soja norte-americana em relação à brasileira. Numa circunstância como essa, ao invés de continuar hostilizando os produtores rurais, como sempre fez, seria bom que o atual governo passasse a defender com mais afinco o agronegócio brasileiro. Nem que seja apenas para impedir que o país perca as vantagens que já conquistou nessa área.