Profissão, que exige diploma da Escola de Formação de Oficiais da Marinha Mercante (EFOMM), tem ganhos e progressão de carreira promissores — mas também desafios, como o impacto dos dias em alto-mar na vida social. Karine abandonou o curso de engenharia para se tornar pilota de navio e está satisfeita com a escolha.
Arquivo Pessoal / Divulgação via BBC
A vida da carioca Karine Granato, de 26 anos, é literalmente dividida entre o alto-mar e a terra firme: como pilota de navio, ela trabalha 28 dias embarcada e, depois, tem 28 dias de descanso em casa.
Dessa forma, ao longo do ano, ela tem seis meses de trabalho e seis meses de descanso.
Atualmente, Karine trabalha no mercado offshore (exploração em alto-mar), apoiando as plataformas de petróleo e gás em cidades do Rio de Janeiro e em Santos, no Estado de São Paulo.
Além de ser responsável por pilotar o navio, ela ainda cuida de todo sistema de segurança, salvatagem (procedimentos e equipamentos para salvar a vida humana em caso de emergências), verifica as certificações da embarcação, além de outras atividades.
Para assumir essa função, ela passou pela Escola de Formação de Oficiais da Marinha Mercante (EFOMM), responsável por formar profissionais dessa área, em cursos que duram três anos.
Karine reconhece que pessoas à sua volta de “assustam” com sua rotina, mas não se vê trabalhando com outra coisa.
“Os 28 dias em terra compensam”, garante.
Mesmo com muitos dias fora de casa, Karine diz que ainda assim consegue ter tempo para passar com parentes e amigos. Ela também vê a tripulação como uma família — com quem passou o último Natal e Ano Novo, compartilhando até ceia para comemorar.
“A gente faz de tudo para se conectar. Não é um super mar de rosas, mas no geral acho que vale a pena. Você abre mão de muita coisa e ganha outras também.”
Um dos benefícios mais citados por quem trabalha na área da marinha mercante é a remuneração.
Karine Granato, de 26 anos, desistiu da engenharia para se formar na área de marinha mercante.
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Segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego, o salário médio de admissão de um oficial de quarto de navegação da marinha mercante foi de R$ 8.197 em 2024. Esse é a função inicial de um oficial de náutica em uma tripulação de navio (entenda os cargos abaixo).
Mas esta é uma média — Carlos Müller, presidente do Sindicato Nacional dos Oficiais da Marinha Mercante (Sindmar), diz que os salários iniciais podem chegar à faixa de R$ 15 mil a R$ 20 mil, com maiores ganhos na indústria de petróleo e gás.
Os benefícios também costumam ser atraentes, com políticas internas de progressão de carreira, plano de saúde, previdência privada e auxílio educacional.
Karine gostou tanto da ideia de pilotar um navio, algo que surgiu na conversa com uma amiga, que abandonou o curso de engenharia de telecomunicações para entrar na EFOMM, aos 20 anos.
Ela conta que não se identificava muito com a engenharia e achou “muito legal” a possibilidade de pilotar um navio — embora a família tenha estranhado a virada brusca na carreira, por não conhecer a nova profissão escolhida pela jovem.
Mudança de carreira: saiba por onde começar
A EFOMM forma oficiais em dois cursos: náutica e máquinas.
Os oficiais de máquinas cuidam da operação e manutenção dos sistemas de máquinas do navio.
Já os oficiais de náutica, como Karine Granato, são responsáveis pelo uso dos equipamentos de convés, navegação e comunicações de bordo. “Piloto de navio” é uma denominação informal para esses oficiais.
Além da pilotagem, os oficiais de náutica podem atuar como inspetores de segurança em terminais aquaviários, navegadores em portos com sistemas de VTS (Vessel Traffic Services, ou Serviços de Tráfego de Embarcações, em português) e nas tripulações de navios de passageiros.
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Considerando a hierarquia na carreira de oficial de náutica, os postos, do mais baixo ao mais alto, são: segundo oficial de náutica; primeiro oficial de náutica; capitão de cabotagem; e capitão de longo curso.
O avanço nesses postos depende do tempo de embarque e, em alguns casos, também da realização de cursos de aperfeiçoamento (como para se tornar capitão de cabotagem).
Em uma tripulação, a hierarquia dos oficiais de náutica é dividida, da função mais baixa à mais alta, entre oficial de quarto de navegação (posto que pode ser ocupado por segundo oficial de náutica ou primeiro oficial de náutica); imediato (primeiro oficial de náutica ou capitão de cabotagem); e comandante (capitão de longo curso).
Conciliando o casamento com o trabalho embarcado
Apesar de adaptado à rotina atual, Jonatas planeja deixar o trabalho embarcado por volta dos 50 anos.
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Jonatas Aires, 28 anos, mudou de Santa Maria (RS) para o Rio para estudar na EFOMM. Ele buscava independência financeira e uma formação civil, já que não tinha interesse em seguir carreira militar, como o pai.
O setor da marinha mercante envolve atividades econômicas no mar e tem caráter civil. É diferente da Marinha de Guerra, que é militar e voltada para a defesa nacional.
Entretanto, a formação teórica na EFOMM é realizada pela Marinha de Guerra.
Por isso, nesse período, os alunos são considerados militares e recebem soldo militar — mas o vínculo é encerrado após a formação.
Jonatas flertou com a ideia de cursar a área de máquinas, motivado por sua afinidade com física. Porém, ao conhecer o trabalho prático, percebeu que o setor exigia aptidões que não eram seu foco, como automação e eletrônica.
Foi durante o curso que teve interesse pela carreira de náutica. Segundo ele, a experiência no passadiço, local do navio onde se manobra e conduz a embarcação, foi decisiva para sua escolha.
“Me apaixonei em uma visita durante a formação na EFOMM. Tivemos a oportunidade de embarcar em um navio da Marinha do Brasil por dez dias dias e de conhecer uma embarcação offshore”, relembra
Hoje, ele trabalha como oficial de quarto de náutica em cidades do Rio de Janeiro, em regime 28 por 28 dias.
‘Já aconteceu com pessoas conhecidas de não conseguirem ir ao enterro porque estavam muito longe’, relata Jonatas.
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Sua rotina inclui tarefas como monitoramento de navegação, controle de documentação e gestão de cargas para plataformas de petróleo.
Apesar das vantagens, como o salário atrativo e os desafios constantes, ele destaca as dificuldades de estar longe da família. Perder momentos importantes, como aniversários ou até funerais, é uma realidade para quem vive embarcado.
“Em casos de emergência, a empresa manda de volta o barco para terra, mas, às vezes, não é possível chegar a tempo. Já aconteceu com pessoas conhecidas de não conseguirem ir ao enterro porque estavam muito longe”, diz.
Jonatas ainda relata conseguir conciliar a rotina de trabalho com o casamento. Seu marido trabalha remotamente e tem liberdade para viajar — o que, segundo o piloto, ajuda muito quando os dois se encontram.
“A gente aproveita muito para pegar um carro e viajar durante os meus desembarques’, diz.
Apesar da adaptação à rotina atual, o piloto já planeja sua transição para uma vida longe dos navios.
“Acredito que, aos 50 anos, já estarei satisfeito com o que conquistei e pronto para começar uma fase em terra”, afirma.
‘Minha escala é 60 por 60’
Pilota de navio, Geórgia Siqueira, 24 anos, compartilha sua rotina de trabalho nas redes sociais.
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Geórgia Siqueira, de 24 anos, também é pilota e divulga sua rotina nas redes sociais, o que costuma despertar muita curiosidade de internautas.
Embora esteja satisfeita profissionalmente, a jovem reforça que uma das principais dificuldades é manter a vida social.
“Acho difícil namorar, porque quando você começa a conhecer uma pessoa, logo já tem que embarcar. Eu sou solteira, mas tenho amigas [da mesma área profissional] que são casadas e que namoram”, relata.
Esse tipo de obstáculo faz com que ela não considere se aposentar trabalhando como pilota.
“Não me vejo trabalhando pelo resto da vida em um navio”, afirma.
“Eu quero casar e constituir família, então é mais difícil. Pretendo trabalhar até os 40 anos e depois viver de rendimentos, igual outras pessoas fazem.”
Já Karine Granato não vê a formação de uma família como fator limitante da profissão.
“Tenho muitos exemplos inspiradores de mulheres que conseguem conciliar a vida a bordo com a maternidade, graças ao apoio das empresas de navegação. Isso me dá confiança de que é possível continuar evoluindo profissionalmente sem que isso seja um obstáculo.”
‘Não me vejo trabalhando pelo resto da vida em um navio’, afirma Geórgia.
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Outro desafio apontado por Geórgia é o machismo, que ela diz ser comum no dia a dia da profissão.
Somente em 1997 a EFOMM passou a ter alunas mulheres. Em 2009, uma mulher se tornou comandante pela primeira vez no Brasil.
Nos postos mais altos da carreira de oficiais de náutica, as mulheres são minoria: 10,2% entre capitães de cabotagem e 1,78% entre capitães de longo curso, de acordo com dados da Diretoria de Portos e Costas Marinha do Brasil.
“Quando comecei a embarcar, tinha 21 anos. Às vezes, tinha que dar ordem para pessoas mais velhas”, conta Geórgia.
“No início, tive um pouco de dificuldade de me impor e fazer com que os meus subordinados [a maioria homens] entendessem isso.”
Além da escala 28 dias por 28, como a cumprida por Karine e Jonatas, há também outros formatos, como 42 por 42 e até 60 por 60.
Este é o caso de Geórgia Siqueira, que fica dois meses embarcada e dois meses descansando.
Hoje, ela atua em um navio que transporta produtos químicos. O trajeto é fixo: a carga é posta em Salvador (BA) e descarregada em Santos (SP).
A profissão também a levou para fora do Brasil. Após os três anos de formação na EFOMM, Geórgia fez estágio em um navio petroleiro e ficou um ano longe do Brasil — passando por Singapura, Índia, Egito e Estados Unidos.
Como ingressar na área
‘É uma carreira globalizada’, diz Carlos Müller, presidente do Sindicato Nacional dos Oficiais da Marinha Mercante.
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Para entrar na Escola de Formação de Oficiais da Marinha Mercante (EFOMM), é preciso passar por testes práticos e teóricos.
Em 2024, foram oferecidas 293 vagas, divididas entre os dois centros de formação, no Rio de Janeiro (RJ) e em Belém (PA). Há limite de idade: o candidato precisa ter entre 17 e 23 anos.
Após o primeiro ano de formação básica, os alunos escolhem sua área de especialização e completam mais dois anos de estudos. Em seguida, passam por um estágio prático de um ano a bordo, geralmente em alto-mar.
Ao concluir o curso, ganham título de bacharéis em ciências náuticas e assumem funções de segundo oficial de náutica ou de máquinas.
Carlos Müller, do Sindmar, afirma que a profissão tem ganhado visibilidade nas redes sociais, mas ainda é marcada por desafios como os longos períodos longe da família e exigências rigorosas de capacitação.
“É uma carreira globalizada, com padrões regulatórios internacionais, o que demanda constante atualização”, afirma.
Apesar disso, ele ressalta o crescimento no setor marítimo, impulsionado por atividades como a exploração de petróleo e o transporte de cargas.
Entre as modalidades de atuação de um piloto, está a cabotagem, a navegação entre portos brasileiros; o longo curso, que envolve viagens internacionais; e o apoio marítimo, ou offshore, que dá suporte a plataformas e unidades de perfuração.
Escala 1×1
‘Não é um super mar de rosas, mas no geral acho que vale a pena. Você abre mão de muita coisa e ganha outras também’, diz Karine sobre a profissão.
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Nessa área, a equivalência entre o número de dias trabalhados e de dias folgados é uma exigência das normas e leis brasileiras.
A escala de embarque e o trabalho dos marítimos são regulados por acordos coletivos de trabalho, que cada empresa assina junto aos sindicatos.
“No século passado, os oficiais da marinha mercante brasileira chegaram a cumprir a extenuante escala 23×1”, destaca Müller.
“Um marco importante foi alcançado em 2017, quando os marítimos brasileiros conquistaram a assinatura de acordos coletivos de trabalho com todas as empresas do setor, garantindo o regime 1×1. Esse modelo trouxe um equilíbrio mais saudável entre a vida profissional e a vida social e familiar dos trabalhadores”, destaca o presidente do Sindmar.
Segundo Cláudio Menezes, gerente executivo da Transpetro (empresa brasileira de transporte e logística de combustíveis), a maioria das empresas de navegação brasileira pratica o 1×1 — uma das “melhores práticas” globais na organização do trabalho, em suas palavras.
Profissionais dessa área contratados via CLT têm direito a 30 dias de férias remuneradas como toda pessoa empregada desta forma.
Mas existe um debate, além de práticas distintas a depender do acordo coletivo e da empresa, sobre se as férias podem ser descontadas do período de folga (ou seja, aquele que corresponde aos dias em que funcionário ficou embarcado).
Embora seja uma escala considerada equilibrada pelos especialistas, o regime 1×1 não reflete a situação internacional da profissão. O critério de embarque praticado por empresas estrangeiras pode variar conforme a política de cada uma, a depender das funções exercidas a bordo.
Segundo Müller, a Convenção do Trabalho Marítimo, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), permite que profissionais da navegação internacional permaneçam embarcados por até onze meses consecutivos, com direito a apenas um mês “desembarcado”, pago pelo empregador — o que, de acordo com ele, acontece em países do Sudeste Asiático.
Saúde mental dos trabalhadores
Apesar de estar satisfeita atualmente com a profissão, Geórgia Siqueira não se vê trabalhando a vida toda em um navio.
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Tanto Karine quanto Geórgia relatam fazer terapia para aguentar essa rotina de trabalho incomum. Sempre que possível, elas, assim como Jonatas, praticam atividade física na academia do navio.
“É muita pressão que a gente sofre, e fazer terapia é essencial. Eu malho todos os dias a bordo e faço meu treino. Só não treino quando está com mau tempo, porque o navio balança muito”, conta Geórgia.
Segundo a psicóloga Hosana Siqueira, especialista em psicologia clínica pela Universidad Europea del Atlántico, na Espanha, os profissionais que trabalham em embarcações de grande porte enfrentam uma série de desafios psicológicos.
“Essas profissões carregam responsabilidades gigantescas, isolamento social e exposição a situações de alta pressão — tudo isso enquanto lidam com um cotidiano longe do padrão”, explica Siqueira.
A psicóloga destaca que a alteração do ciclo do sono, comum em viagens marítimas, também contribui para o desgaste emocional.
“É preciso pensar que ele [o trabalhador] vai estar dormindo e acordando durante X dias com pessoas estranhas. Todos esses fatores acabam influenciando e impactando emocionalmente”, explica Siqueira.
Os sinais de alerta para problemas de saúde mental incluem insônia, fadiga crônica, irritabilidade, falta de concentração, sentimentos de vazio e até mesmo dores musculares.
A psicóloga destaca a importância de reconhecer esses sinais e buscar ajuda o mais rápido possível.
“Uma vez em casa, é importante aproveitar o tempo para atividades que deem prazer e estimulem diferentes áreas da vida”, aconselha Siqueira.
A terapia, inclusive por meio de plataformas online, pode ser uma grande aliada para os profissionais do mar.
“O acompanhamento terapêutico hoje pode ser feito inclusive quando esse profissional está embarcado”, afirma a psicóloga.