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Escrita por Walcyr Carrasco entre 2013 e 2014, a novela “Amor à Vida”, da Globo, dificilmente seria reprisada nos dias atuais. “E o motivo é simples: meu personagem, Félix, foi montado no politicamente incorreto”, diz o ator Mateus Solano, de 43 anos, que conquistou a simpatia do público ao viver um vilão homossexual que conheceu a redenção após se apaixonar pelo personagem de Thiago Fragoso.”As pessoas curtiam porque ele dizia tudo o que cada um queria dizer e não podia, pois magoaria alguém ou até poderia ser preso. Qual chefe pode hoje chamar a secretária de cadela? Qual pessoa atualmente pode ser homofóbica, transfóbica, racista, gordofóbica, etarista? Félix era tudo isso e, mesmo assim, ainda é muito amado”, afirma.E a aprovação permitiu que a Globo liberasse Solano e Fragoso para encenar o primeiro beijo homoafetivo entre homens em uma novela das nove.Félix projetou uma sombra que, muitas vezes, ofuscava o próprio Mateus Solano, que se inspirou na situação para rascunhar um conto sobre Augusto, um figurante que luta para encontrar a si próprio em meio a uma rotina pobre de sentido.”Estávamos em busca de um monólogo, pois Mateus queria experimentar esse tipo de atuação, mas não encontramos nada. Até que me lembrei daquele texto incompleto sobre um homem que vive em um lugar muito aquém da sua potência como ser humano”, diz Miguel Thiré, diretor de “O Figurante”, fruto daquela pesquisa, que chega ao Teatro Renaissance, em São Paulo.A situação é peculiar -no palco nu, Solano dá vida ao figurante e demais personagens por meio do trabalho mímico. No momento em que Augusto está em um set de filmagem, por exemplo, a cena é construída apenas pelo som do burburinho dos profissionais.”A plateia vê somente o figurante que, normalmente, passa despercebido em um ambiente como aquele”, diz Solano, que escreveu a dramaturgia com o apoio da atriz e diretora Isabel Teixeira, criadora do método “Escrita na Cena”, que estimula o ator a explorar a própria criatividade por meio de improvisos.”Atores e atrizes escrevem no ar da cena, onde a vírgula é a respiração e o texto é a palavra dita. Depois tudo vai para o papel. Essa foi a tinta de base usada para escrever ‘O Figurante'”, afirma Teixeira, que aposta na encenação essencial, que se vale basicamente do corpo e da voz como balizas do jogo cênico.Para evitar ser refém de Félix, Solano diversificou os papéis nos últimos dez anos, ainda que a vilania sempre lhe traga bons frutos. Como dr. Hermínio, personagem do filme “Madame Durocher”, de Dida Andrade e Andradina Azevedo, exibido no cinema em novembro, sobre a primeira mulher parteira reconhecida como membro da Academia Nacional de Medicina, no início do século 19.Hermínio revela preconceito de gênero ao impor barreiras sociais e culturais para que a francesa Marie Josephine Mathilde Durocher se estabeleça no campo da obstetrícia.”Foi um misto de diversão com calhordice, pois todo vilão quer mostrar que não é, o que o obriga a ter duas caras”, comenta ator, defendendo que Félix não era único personagem desprezível em “Amor à Vida”, mesmo que tenha sido capaz de jogar a sobrinha recém-nascida em uma lixeira.”É um personagem interessante porque, mesmo com todos os trejeitos, ele não se assumia homossexual, assim como sua família, apesar de todas as evidências. A grande virada veio quando Edith, personagem da Bárbara Paz, anunciou para todos que Félix era gay. Naquele momento, quem saiu do armário não foi o Félix, mas a família brasileira, cujo preconceito camuflava aquela informação porque era mais conveniente não tocar naquele vespeiro.”É o que ainda o deixa cético em relação a uma possível evolução dos costumes a partir da exibição da cena em rede nacional do beijo entre dois homens. “A televisão era uma referência cultural para o brasileiro, mas o interesse comercial sempre se impôs. Assim, se você tem rabo preso com uma empresa X, não pode falar determinadas coisas, o que deixa os artistas reféns”, afirma.”Gosto de citar uma frase que o Antonio Fagundes já dizia naquela época de que a televisão não tem uma programação interrompida por comerciais, mas uma sequência de comerciais interrompida pela programação.”Com uma situação financeira confortável, Mateus Solano pode recusar trabalhos, especialmente quando suas convicções ecológicas são contrariadas.”Já deixei de ganhar muito dinheiro por causa disso”, garante ele que, além do cachê, quer saber qual é a contrapartida socioambiental da empresa contratante. “Se não tem ou se é insuficiente, recuso porque preciso ser coerente com o meu discurso e com a minha forma de ver o mundo.”